quinta-feira, setembro 07, 2006

A Agricultura e a Rodada de Doha - III

Entre os países em desenvolvimento existiam, e existem, aqueles que são dependentes da importação de produtos alimentícios. Esses países resistem aos cortes de subsídios à exportação por parte dos países desenvolvidos em virtude de um possível aumento dos preços no mercado mundial. Ainda que aceitem que o aumento dos preços possa beneficiar os seus agricultores e permitir um aumento da produção nacional, consideram necessário que as suas necessidades relativas à importação de alimentos sejam tratadas de forma mais eficaz.
Mudanças relativas aos possíveis afeitos negativos do programa de reforma no âmbito geral do comércio agrícola sobre os países de menor desenvolvimento relativo e dependentes da importação de alimentos eram já objeto de negociações na OMC, tendo sido, inclusive, renegociado o Convênio sobre Ajuda Alimentar. Igualmente examinava-se as medidas a serem implementadas para a assistência técnica e financeira com o objetivo de melhorar a produtividade e a infraestrutura agrícola desses países.
Por outro lado o Acordo sobre Agricultura continha disposições relativas a importantes preocupações sobre a segurança alimentar, o meio ambiente, o desenvolvimento sustentável, no que envolve a agricultura, e as questões ligadas à estrutura fundiária. Os países membros aceitavam que a agricultura não serve apenas para a produção de alimentos e fibras para tecidos, como o algodão por exemplo (o combustível era ainda uma questão marginal), mas inclui os aspectos "não de todo comercial da agricultura".
Um dos pontos principais das negociações recaia sobre os produtos da "caixa verde" (ver postagem anterior) e se os subsídios realmete não distorciam o mercado ou se são realmente necessários para que a agricultura alcance as suas múltiplas finalidades, incluindo aí as preocupações com o meio ambiente. O centro da questão eram os subsídios que não estimulavam a produção ou afetavam os preços. Julgava-se que as disposições existentes eram insuficientes para tratar de modo adequado os aspectos "não de todo comerciais da agricultura".
Preocupações não comerciais estariam vinculadas à produção e seriam portanto um tratamento especial e diferenciado para os países desenvolvidos, os mais interessados na multifuncionalidade da agricultura. O tema estendia-se a outras atividades econômicas igualmente com características multifuncionais, como os serviços e os bens não-agrícolas.
Ainda quanto aos subsídios, estava em discussão a proteção aos países que utilizavam subsídios em conformidade com o Acordo sobre Agricultura, cujo prazo se esgotaria em 2003.
Quanto ao Acordo em sí, havia a pretenção, por parte de alguns países, de incluir no âmbito do Acordo os produtos florestais e a pesca, de modo a incluí-los nas normas e disciplinas sobre a conservação e gestão de recursos do meio ambiente, de acesso aos mercados e das restrições para a exportação dos troncos de árvore em seu estado bruto.
Iniciada a Conferência Ministerial de Seattle a multifuncionalidade da agricultura revelou-se um dos temas centrais para divergêcias e conflitos. A União Européia e alguns outros países insistiram no seu tratamento, o que foi de pronto rejeitado pelo Grupo de Cairns. Contando com o apoio de ONGs envolvidas na defesa do meio ambiente e dos sindicatos de muitos dos países da UE, que pressionavam por cláusulas trabalhistas nos países em desenvolvimento, a multifuncionalidade da agricultura, juntamente com as propostas antidumping, levaram ao encerramento da Conferência.
O impasse significava um adiamento para a plena integração da agricultura às regras multilaterais de comércio e na elaboração de regras que reduzam a pratica do dumping. No encerrar-se a Conferência Ministerial de Seattle estava adiado o lançamento da Rodada do Milênio e o ano de 2000 tornou-se o marco para o início das negociações que levassem ao desbloqueio da agenda comercial e, esperava-se, recompor as bases para o entendimentoe para o reexame das prioridades e objetivos.
O fracasso de Seattle foi sentido com mais intensidade pelo Grupo de Cairns e pelos EUA. O primeiro pelo seu posicionamento contrário a todo e qualquer subsídio a agricultura e ao conceito da multifuncionalidade, o segundo por ver ameaçada a sua liderança no comércio internacional e a crescente dificuldade para a sua agricultura no acesso a novos mercados. Principal ator nas divergências antidumping e responsável por altos subsídios à sua agricultura, os EUA viam fechar-se os mercados estrangeiros para seus produtos agrícolas. (continua)