sábado, junho 30, 2007

A Rodada de Doha e suas razões

O Acordo sobre a Agricultura entrou em vigor em 1 de Janeiro de 1995. Seu objetivo era estabelecer as bases de um sistema de comércio agropecuário equitativo e orientado para o mercado. Era, portanto, parte do mesmo objetivo maior da OMC. Estabelecia compromissos específicos para reduzir as subvenções internas e os subsídios às exportações e, ainda, garantia o acesso aos mercados. Tudo isso mediante um reforço das normas e disciplinas do GATT (Acordo Geral de Tarifas e Comércio, inicialmente negociado em 1947), de modo a torna-las mais eficazes, que envolviam as licenças para importação, as inspeções prévias nas exportações, as medidas de salvaguardas de carater urgente e os obstáculos técnicos ao comércio. Esses obstáculos, geralmente, eram resultantes da aplicação de Normas Técnicas emitidas por instituições internacionais específicas de modo algum relacionadas ao comércio. Nos casos de conflitos ou controvérsias sobre questões abordadas pelo GATT - que continua regulando o comércio de bens não-agrícolas - prevaleceriam as disposições do Acordo sobre a Agricultura. Incluía ainda, como preocupações não comerciais, a segurança alimentar e a proteção ao meio ambiente. Previa o tratamento especial e diferenciado para os países em desenvolvimento e facilidades no acesso aos mercados para os produtos desses países.

Esse Acordo, como todos os que resultaram da Rodada Uruguai, foi produto de um processo de negociações que - ao reformar o GATT de 1947 criou a própria OMC - originou uma série de concessões e compromissos que os Membros (da OMC) concordaram em assumir sobre o acesso aos mercados, no tratamente da assistência interna (doméstica) e nos subsídios às exportações. Resultou, ainda, no Acordo sobre Medidas Sanitárias e Fito-sanitárias e na Decisão Ministerial relativa aos países menos desenvolvidos e aos países importadores líquidos de alimentos. Alguns países importadores líquidos de alimentos são países desenvolvidos, mas a OMC, ao se referir a esses países, refere-se exclusivamente aos países de menor desenvolvimento relativo, ou seja, aqueles com renda per capita inferior a US$600.

No seu todo, esses resultados constituíam um arcabouço para a reforma do comércio agrícola e das políticas nacionais ao longo dos anos. Era o movimento decisivo para a formação de um comércio agrícola orientado pelo e para o mercado, com normas claras que o tornariam mais previsível e estável. Em seu conjunto encaminhavam questões de grande importância para os países em desenvolvimento, como, por exemplo, a assistência rural, sem que isso provocasse distorções ao comércio ou gravassem os agricultores.

Quanto ao mercado, propriamente dito, as barreiras não tarifárias seriam substituídas por tarifas equivalentes ou seja, que oferecessem o mesmo nível de proteção. Tanto essas quanto as já existentes seriam reduzidas em 36% no prazo de 6 anos, para os países desenvolvidos, ou 24% em 10 anos pelos países em desenvolvimento. A redução mínima por produto deveria ser de 15% para os desenvolvidos e de 10% para os demais. Os 36% e 24%, no entanto, não eram para os produtos individualmente, mas para a média geral do conjunto (todos os produtos).

No âmbito das disposições sobre a conversão em tarifas de outras modalidades de barreiras eram mantidas as oportunidades de acesso já existentes e estabelecidos os contingentes tarifários de acesso mínimo quando esse acesso fosse inferior a 3% do consumo nacional, aumentando para 5% ao longo do período de implementação. 6 anos para os desenvolvidos e 10 anos para os em desenvolvimento. Isso para todos os produtos.

Para os produtos que passariam a ser tarifados foram criadas disposições especiais de salvaguardas no caso de um súbito aumento das importações ou se essas fossem feitas em valores expressos em moedas nacionais dos países exportadores em montante superior a um determinado nível. Essas salvaguardas ficavam na dependência da proporção dos produtos importados no consumo nacional. Quanto maior o consumo antes da conversão menores as salvaguardas.
O Acordo sobre a Agricultura permitia aos países, sob determinadas condições, manter as restrições às importações de produtos agrícolas durante todo o período de implementação. As condições eram:
- quando o consumo do produto, natural ou processado, fosse inferior a 3% do consumo nacional nos anos de 1986 a 1988;
- se o mesmo produto nacional não tivesse recebido subsídios à exportação desde 1986;
- se aplicadas (ao produto nacional) medidas eficazes para a redução da produção interna;
- quando concedidas ao produto importado condições de acesso mínimo. Esse acesso, de 4% no primeiro ano do período de implementação, deveria ser elevado a 8% no sexto ano.
Para os países em desenvolvimento o Acordo sobre a Agricultura seria muito menos vantajoso do que esperavam, não apenas pelas dificuldades, para muitos, na sua implementação, mas principalmente pelo não cumprimento, por parte dos países desenvolvidos, de todos os seus compromissos. O Artigo 20 do Acordo estabelecia a retomada das negociações 1 (um) ano antes do fim do período de aplicação (ou implementação) para os países desenvolvidos. Essa retomada ocorreu em Março de 2000 quando os problemas dos países em desenvolvimento se acumulavam nas áreas de redução tarifária e de subsídios, tanto internos como para exportações, praticados pelos dois principais Membros entre os países desenvolvidos, EUA e UE.
Ambas são questões complexas, mas os subsídios à agricultura haviam se tornado, ao longo dos cinco anos anteriores, uma definitiva barreira para o crescimento económico dos países em desenvolvimento. Para o GATT - que não era uma organização mas é entendido como antecessor da OMC - era tratado em três compartimentos: verde, amarelo e vermelho. Os permitidos, no verde; os que requeriam regulamentação, no amarelo; e os proibidos, no vermelho.
Para a agricultura a situação era especial. Não havia o vermelho e foi criado o azul. Todos as medidas de redução foram incluídos no Amarelo, ficando no Azul algumas especialmente retiradas do Amarelo por um específico parágrafo de um dos Artigos do Acordo sobre a Agricultura.
Na questão tarifária o problema era calcular as novas linhas tarifárias ou como determinar novas tarifas. (continua)

segunda-feira, junho 25, 2007

A Rodada de Doha - A Difícil Conclusão - II

Em Postdam, Alemanha, foi feita mais uma tentativa em dar seguimento a Rodada de Doha, mas, muito provavelmente, não será a última.
Brasil e Índia, em nome dos países em desenvolvimento, suspenderam as conversações ao admitirem que EUA e UE não haviam avançado em suas posições sobre os subsídios a agricultura, condicionando uma possível redução nesses subsídios a menores tarifas aduaneiras para produtos industrializados por parte dos países em desenvolvimento, bem como a abertura desses mercados para o pleno comércio de serviços.
A situação dos quatro países é a seguinte:
Na formação do PIB
Agricultura - Índia 19,9% - Brasil 8% - EUA 0,9% - UE 2,1%
Industria - Índia - 19,3% - Brasil - 38% - EUA 20,4% - UE 27,3%
Serviços - Índia - 60,7% - Brasil - 54% - EUA 78,6% - UE 70,5%
Ocupação/Emprego
Agricultura - Índia 60% - Brasil 20% - EUA 0,7% - UE 2,1%
Industria - Índia 12% - Brasil 14% - EUA 22,9% - UE 27,2%
Serviços - Índia 28% - Brasil 66% - EUA 76,4% - UE 67,1%
Nesse embate entre desenvolvidos e em desenvolvimento os números mostram a disparidade de Brasil e Índia e o equilíbrio de EUA e UE.
Como ator o Brasil tem um papel mais relevante do que a Índia, principalmente em agricultura, em que é o maior produtor embora menos dependente da agricultura na formação do PIB e do emprego. Na Índia o desemprego é de 7,8% enquanto no Brasil chega a 9,6%.
O Brasil é parte do Grupo de Cairns, que reúne três desenvolvidos, o Canadá, a Austrália e a Nova Zelândia. O primeiro, por questões climáticas, produz uma safra por ano, o segundo, em consequência de um prolongado período de seca, viu reduzida sua produção pecuária e o terceiro não possui extensão territorial. Em produção agropecuária o Brasil é superior aos três.
Ao longo da Rodada de Doha o Brasil soube formar e fortalecer o G-20, do qual a Índia faz parte. É também (o Brasil) o líder do G-134 (países em desenvolvimento, de menor desenvolvimento relativo e aqueles que são importadores líquidos de alimentos).
A força da Índia vem de sua população: 6 vezes maior do que a do Brasil, 4 vezes a dos EUA e 2,5 a da UE. 25% de sua população vive abaixo da linha de pobreza, contra 31% do Brasil, mas ainda assim cinco vezes maior.Na área de serviços ocupa posição de destaque na produção de softwares, daí a importância deste item na formação do seu PIB.
A dificuldade dos países em desenvolvimento no sistema multilateral de comércio, representado pela OMC, é menos consequência do sistema em si e mais, muito mais, da dificuldade, ou mesmo da incapacidade, desses países desenvolverem políticas e disciplinas adequadas as suas características e compatíveis com as Normas da OMC. A OMC, através de sua Secretaria Geral, juntamente com o ICC, agência da UNCTAD, desenvolve amplo programa de formação de pessoal e de assessoramento para o desenvolvimento dessas políticas e disciplinas. É muito pequena a participação do ICC no Brasil. As Normas da OMC permitem amplos mecanismos de defesa aos países em desenvolvimento que se sintam prejudicados e muitas de suas Decisões Ministeriais voltam-se exclusivamente para assegurar esses direitos.
A posição do Brasil e da Índia ao retirarem-se da reunião em Postdam, em que pese o que possa ser dito, não enfraquece a posição dos países em desenvolvimento, ao contrário.
O problema não é a posição do país na OMC e muito menos a sua postura diante dos países desenvolvidos. O que levou a suspensão da Rodada de Doha em Julho passado foi a vantagem concedida pelo Brasil - não por sua delegação, mas pela marcha de tratores sobre Brasília, pouco antes da Reunião Extraordinária que deveria ter dado segmento a Rodada, que resultou em decisões internas contrárias às que o Brasil defendia em nome dos 134 países sob mandato dos quais a delegação brasileiro atua.
Com maiores vantagens comparativas, e em alguns setores maior vantagem competitiva, o Brasil não tem uma política agropecuária que permita à delegação brasileira na OMC exercer plenamente a sua inegável capacidade negociadora. Pratica um crédito agrícola que possue características de subsídio direto ao agricultor, possui um estrutura interna de comercialização deficiente e, através da Conab, uma atuação pouco clara e que pode ser entendida como sustentação de preços ao produtor com o correspondente pagamento em moeda sem contrapartida ao consumidor. A situação do agricultor é de elevado endividamento, muito superior ao valor total da produção.
A OMC é um jogo de estratégias em que qualquer argumento é argumento. A agricultura brasileira não se encontra sob uma coordenação única, a descoordenação dos diversos ministérios que estendem sua atuação a agricultura, e aparentemente desconhecem o que se passa na OMC, prejudicam muito a posição do Brasil, forçando muitas vezes a delegação brasileira a atuar como terceiro país por falta de apoio interno.
Foi bastante positiva a atitude do Brasil e da Índia, mas é muito pouco provável que as reuniões possam tomar um ritmo, e um rumo, mais construtivo enquanto Brasília não compreender o que realmente está em jogo. EUA e UE contam com a descoordenação interna para exigirem mais e concederem menos. O Brasil assumiu uma posição na OMC em que é a peça chave para a conclusão de Rodada, falta a compreensão e o apoio interno.

terça-feira, junho 12, 2007

A Rodada de Doha - A difícil conclusão

Iniciada ao término da IV Conferência Ministerial da OMC, na cidade de Doha em novembro de 2001, esperava-se que seus resultados estivessem em vigor a partir de 1 de Janeiro de 2005.
Recentemente, na última reunião do G-8, que reúne os 7 países mais ricos e a Rússia - que não faz parte da OMC, foi feito um apelo aos países participantes da Rodada no sentido de buscarem um resultado positivo.
Nesta última segunda feira, dia 11, Brasil e Índia reuniram a maior parte dos países em desenvolvimento, que representam mais de 2/3 (dois terços) dos membros da OMC, objetivando reforçar suas posições para o próximo encontro com EUA e UE (União Europeia), ao final do mês de julho vindouro, quando será tentado um primeiro compromisso que possa estabelecer o equilíbrio entre os grandes interesses em jogo.
A razão do impasse é o Acordo sobre a Agricultura e, neste tema, os subsídios à exportação de produtos agropecuários e as subvenções internas, que mantém os preços aos consumidores urbanos convenientemente baixos, nos EUA e UE. É pelo fim de todos os subsídios que se posicionam Brasil e Índia e demais países em desenvolvimento, apoiados pelo Canadá, Austrália e Nova Zelândia.
O Acordo sobre a Agricultura, ora em discussão, encontra-se em vigor desde 1 de Janeiro de 1995, quando, com a OMC, tem início o sistema multilateral de comércio, em substituição ao GATT - Acordo Geral de Tarifas e Comércio.
Durante os anos em que o GATT regulou parte do comércio entre as nações os produtos agrícolas não eram tratados em separado, mas de igual modo aos demais produtos industriados, exceto quanto aos subsídios. Enquanto proibidos para os industrializados podiam ser amplamente praticados com os agropecuários básicos, com uma única restrição: quando envolvessem uma vaga "parte equitativa" nunca definida.
Não eram só os subsídios que eram permitidos, também eram aceitas as restrições às importações desde que os países importadores mantivessem uma proporção mínima dos produtos importados com a produção nacional.
Desregulado, nenhum outro setor enfrentava, no comércio internacional, tantos obstáculos como a agricultura.
De início isso tinha como justificativa uma Europa parcialmente destruída pela II Guerra Mundial - o GATT entrou em vigor em 1947. Na verdade, as duas principais nações vencedoras, França e Inglaterra, eram senhoras de grandes colónias na África. As PARTES CONTRATANTES ( como se auto-denominaram os países signatários do GATT) eram apenas 23 e abrangiam um mundo que viria a ser substancialmente alterado. Em 1947, eram grandes as preocupações com a recuperação econômica dos países recem-saídos da guerra, mas o GATT voltava-se, antes de mais nada, para as negociações tarifárias que, com a volta à normalidade das atividades econômicas, torna-se-iam necessárias em um futuro não muito distante. Os EUA, como vencedor da II Guerra e única economia em pleno emprego, procurava, ainda, evitar a verdadeira guerra tarifária de toda a década de 1930, consequência da Grande Depressão de 29/30 cujos efeitos perduraram até 1939, início da II Guerra.
Com o passar dos anos a ampla prática dos subsídios combinada com o aumento da produção agrícola começou a produzir um excedente agrícola que viria a criar sérios problemas para muitos países. Alguns precisavam sustentar preços adequados nas ocorrências de sobreprodução enquanto outros adotavam políticas de preços baixos para os consumidores urbanos.
Os países em desenvolvimento se viram com dificuldades de manter incentivos aos seus agricultores e sustentar seus níveis de produção. Era essa a situação antes da Rodada Uruguai, da qual resultou o Acordo sobre a Agricultura e a própria OMC. (continua)